Alice em crise
No
capítulo II do Livro de Alice no País das Maravilhas, Alice está em busca de
uma identidade:
“Meu Deus, meu Deus! Como tudo é esquisito
hoje! E ontem tudo era exatamente como de costume. Será que fui eu que mudei à
noite? Deixe-me pensar: eu era a
mesma quando me levantei hoje de manhã? Estou quase achando que posso me
lembrar de me sentir um pouco diferente. Mas eu não sou a mesma (Carroll, Lewis, 1864, pg. 25.).
A próxima pergunta é: ‘Quem é que eu sou?’.
Ah, essa é a grande charada. Essa é a charada que envolve a
crise dos “ismos” na História, pequena Alice! O questionamento da própria
identidade, e a busca de uma verdade preocupa os teóricos.
A hermenêutica contemporânea associada à
teoria da narratividade vem tentando dar uma resposta à charada. A saída
de seu mundo
conhecido para a entrada num outro mundo,
parcialmente desconhecido (afinal, todos os seres do País das Maravilhas também
existem na nossa realidade
– com a diferença de que não falam), leva Alice a perder sua personalidade, sua
identidade; a menina passa a viver conforme as regras do País das Maravilhas, e
quem é ela nesse país? Ora, é a pergunta que a Lagarta faz no Capítulo V: “Quem
é você?” A resposta de Alice ilustra o que foi mencionado:
“Eu... eu... no momento não sei, minha
senhora... pelo menos sei quem eu era quando me levantei hoje de manhã, mas
acho que devo ter mudado várias vezes desde então. (...) Receio não poder
expressar mais claramente, pois, para começo de conversa, não entendo a mim
mesma.”. (Carroll, Lewis, 1864,
pg. 55).
Para Adriana
Peliano, Alice sofre sim de uma crise de identidade e é reflexo em nós. A história de Alice é
a própria condição pós-moderna, é a condição a qual nós em quanto sujeitos
estamos propícios a cada instante, pois, vivenciamos e vivemos a nossa própria
história, a construção de nossa identidade e a perda da mesma. Para Adriana
Peliano:
“Menina rio, Alice transita entre
labirintos aonde se perde e se encontra em ritmos misteriosos. O grande
paradoxo que percorre as aventuras de Alice, diz Deleuze, é a perda do nome
próprio, identidade infinita, eterno devir. Quando a lagarta pergunta para a
menina, quem é você? Alice não sabe a resposta. Eu sei quem EU ERA,
mas tenho me transformado várias vezes desde então. Num paradoxo Alice diz
que não, mas também diz que sim: sei quem sou, contínua transformação. Como
Alice, quando parece que sabemos quem somos, já somos outros, e o que achamos
que somos é o que um dia fomos. E o mundo que conhecemos já é outro a cada
instante. Menina que nasceu no rio de Heráclito, que sabe que o ser e o não ser
conversam todo tempo, num eterno ciclo de se criar a todo momento”. (PELIANO,
Adriana[1],
2011, s/p.).
Anti Alice - Por Adriana Peliano
Para a
artista, Alice se tornou um “caleidoscópio[2]”
de multiplicidades. A própria Alice ilustrada perde a sua identidade, já não é
mais a mesma Alice da era vitoriana criada por John Tenniel, para Adriana
Peliano, muitos artistas foram movidos pela necessidade de superar os
estereótipos da menina, procurando para a mesma novas linguagens e faces. “Ao
invés da pergunta: quem é Alice, hoje desdobram caminhos para quem Alice pode
vir a ser...” (PELIANO, Adriana, 2011, s/p ).
“Os artistas e
ilustradores foram levados a descobrir ou inventar novas relações entre texto e
imagem. A identidade do tema era subvertida pela atração pelo desconhecido e
pelo inexplicável. O ilustrador passou a provocar e transgredir ao invés de
repetir. Questionaram a idéia clássica que a arte devia imitar ou interpretar a
realidade exterior. Passaram a buscar também a subversão, o paradoxo e a
experimentação. Hoje se habita a alteridade e a diferença. Leituras
intertextuais, metalinguagem, montagens múltiplas, narrativas não lineares.
Abracadabra”. (PELIANO, Adriana, 2011, s/p ).
Alice
transforma-se, se perde, se encontra e desencontra-se, é fato sua ligação com
nosso período, o autor Boaventura de Souza Santos a utilizou para explicar o
social e o político na pós-modernidade em seu livro “Pela Mão de Alice”.
A
garotinha de Carroll vem sendo recriada dentro de todos os conceitos existentes
na área artística, ela passou pelo clássico, pelas vanguardas e agora dança
entre nós, assim como nós somos recriados pelos padrões atuais, pelo mercado,
pela indústria cultural e a influencia da cultura de massa.
Figura 5 - Alice–
Salvador Dalí Alice- John
Tenniel
Fonte: http://brasillewiscarroll.blogspot.com, acessado: 21/092011
“Desde o início do
século passado, cada década criou nas diferentes visões e estilos as suas próprias
Alices. Art Noveau, Art Déco, Surrealista, Pop, Psicodélica, Futurista, Gótica,
Näif, Étnica, Dark, Steampunk, surrealista pop[3].
Alice é uma menina doce e ingênua, uma feminista questionadora, uma pequena
perversa, uma assassina louca e sanguinária, uma adulta drogada, uma buscadora
de mundos além da consciência, uma psicodélica delirante, uma guerreira de
espada e armadura, múltipla e mutante’. (PELIANO, Adriana, 2011, s/p).
O sujeito, no início deste século, busca uma forma de
identificar-se na sociedade em que vive, assim como Alice. Os problemas que
fazem com que isso aconteça são as diversas transformações que sua identidade
cultural sofreu ao longo dos anos. A cultura passou a se transformar em um
instrumento e tática indispensável de governabilidade e de reprodução do
capitalismo, de acumulação flexível, já que na esfera do Estado Local assumiu a
forma de animação e espetacularização virando fetiche.
Na esfera social se torna um meio de aquisição de capital
simbólico, de aquisição de status quo
e habitus de classe, como estratégia
de diferenciação na massa, pois o ato de consumir necessita e se apresenta sob
a aparência de um gesto cultural legitimador de imagens ou simulacros. Portanto
a forma-mercadoria avança para a forma-publicitária, pois o que se consome na
pós-modernidade é um estilo de vida - a cultura se transforma no elemento chave
na máquina reprodutiva do capitalismo.
A crise de identidade se manifesta no indivíduo formador
de opiniões, individuo que desenvolve a arte, uma arte também em crise, não
compreendida, ou até mesmo, cheia de valores metamórficos, onde fragmentos
culturais são representados. Hoje, o sujeito é um ser com uma identidade
híbrida e vive sob o signo da pós-modernidade. Segundo Stuart Hall:
O sujeito pós-moderno, conceptualizado não
tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam. (HALL, 1998, pg.12, 13).
Esta ausência de identidade que
acontece no individuo e em Alice percebida através de “Alicinações”,
principalmente, pelo fato do indivíduo não poder viver mais na sociedade como
um ser pleno, como na concepção dos iluministas[4],
unificado desde o seu nascimento a até a sua morte, ou como um sujeito
sociológico, possuidor de uma natureza ideal de um “ser” que o identificaria no
mundo, mas que poderia ser modificada quando em contato com o mundo exterior. Os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram,
de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social.
Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na
modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características
dos períodos anteriores.
Atualmente ele vive um novo modo de se
identificar, sendo um sujeito pós-moderno, sem identidade fixa, nascido da
diversidade de culturas do mundo globalizado, tendo sua identidade construída e
reconstruída permanentemente ao longo de sua existência.
As velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas
identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada ”crise de
identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está
deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social. (HALL, 1998, pg.7)
Nessa
nova sociedade o homem não faz mais parte de um organismo único, ele é
projetado de forma fragmentada, transformando-se em um híbrido cultural, e
sendo obrigando a assumir várias identidades, dentro de um ambiente que é
totalmente provisório e variável, estando sujeito a formações e transformações
contínuas em relação às formas em que os sistemas culturais o condicionam.
O que condiciona principalmente essa nova
identidade do homem pós-moderno, é a indústria cultural que, através da difusão
de símbolos antes restritos a determinadas localidades, os massifica e os
converte em mercadoria de fácil assimilação e absorção pela grande massa.
A
identidade deixa de ser desenvolvida pela influencia recíproca entre o “eu e a
sociedade”, conforme afirma Stuart Hall (HALL, 1998, pg.11), passando a ser
formada pelas “supostas'' necessidades do homem, influenciado pela indústria
cultural. Mas ao mesmo tempo que ele aceita usar destes símbolos da cultura de
massa, ele busca a valorização de sua identidade regional, tentado fazer com
que ela possa coexistir junto com as várias identidades globais ofertadas pela
indústria cultural.
As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre
``a nação'', sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem
identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre
a nação, memórias que conectam seus presente com seu passado e imagens que dela
são construídas. (HALL, 1998, pg.
51)
A
comunidade pode ser considerada outro grande problema de identificação do
sujeito pós-moderno, pois ele não tem em si um conceito formado sobre o que ele
representa no seu Estado. O hedonismo[5]
provocado pela sociedade contemporânea o faz sentir-se um cidadão global, com
necessidades regionais. Ele não cresce mais ouvindo histórias sobre os grandes
heróis de seu povo e sim ouvindo as grandes aventuras da televisão, que não tem
como objetivo centrá-lo na sua região, e sim o de abrir novas portas para que
ele queira e possa se integrar à aldeia global.
A
integração do homem pós-moderno, sujeito fragmentado que busca referências
através das mídias para formar sua identidade, acaba por acontecer de dentro
para fora. Ele, o sujeito pós-moderno, busca na heteronomia da sociedade global
as formas de poder estar se resocializando neste novo mundo.
Toda
essa complexidade de autores como Hall é imortalizada em Adriana Peliano. A
artista busca representar as metamorfoses de Alice e dos personagens inseridos
na história de forma a representar a condição pós-moderna. Com objetos
estranhos e restos de histórias, a representação da perda de identidade é
reinventada se adequando à arte contemporânea. A artista responde a própria
pergunta que todos têm quando se deparam com as obras e imagens de Alice e seus
personagens em uma linguagem tradicional:
Se o
texto é assim, por que as suas ilustrações são em geral tão literais e
unívocas? A proposta da pesquisa Alicinações foi, portanto a de ilustrar
novamente as duas Alices, operando uma nova relação entre texto e imagem, na
busca de uma aproximação de Alice em sua maior complexidade. Tendo como
referência a obra de Deleuze, Lógica do Sentido, a pesquisa desenvolveu-se em
duas etapas: dos corpos em profundidade aos acontecimentos de superfície.
Corpos em profundidade, os personagens das duas obras foram construídos através
de montagens com objetos diversos, segundo seus atributos lógicos, nomes,
significados incorporados pelo uso e características formais.
(PELIANO, Adriana, 2011, s/p, www.algosobre.com.br,
acessado em: 29/09/2011)
A identidade sendo apenas um fragmento, uma colcha de
retalhos, que foi remendada com vários pedaços de culturas homogêneas fez o
homem pós-moderno adotar um simulacro do individualismo levando-o a transitar
entre dois pólos distintos o seu eu interior, aquele que procura saber quem ele
é, e a que sociedade a qual ele pertence que seria o seu eu exterior, que o faz
interagir com o meio no qual ele vive, sendo assim, a forma que a artista
utilizou para mostrar a alma da historia de Carroll.
Toda a amostra de “Alicinações” é um labirinto, um jogo, onde
leva o observador a vasculhar cada parte da obra e buscar signos que
identifiquem à face do personagem e a mensagem social correspondente a
atualidade.
Para a
artista, sua obra:
Buscou-se
recriar através de imagens, a lógica e o sentido do texto, abrindo assim o
leque de referências e possíveis leituras para os diálogos, personagens,
situações e espaços imaginários propostos nas duas obras. As ilustrações foram
elaboradas através de colagens a partir das fotografias dos personagens, entre
outras tantas possibilidades. Também foram utilizadas as ilustrações originais
de Tenniel, segundo novas relações de intertextualidade. Como um jogo
multifacetado de espelhos, refletindo diferentes possibilidades de leitura da
obra segundo diferentes contextos históricos e culturais. Jogos de linguagem,
paradoxos lógico - semânticos, enigmas, múltiplos significados. Como num grande
jogo, o objetivo é desnudar relações imprevistas, desvendar lógicas implícitas,
repropor enigmas e paradoxos. (PELIANO, Adriana, 2011, s/p, www.algosobre.com.br,
acessado em: 29/09/2011).
Adriana
mostra que a cultura de massa consegue fazer uma
revalorização da cultura local, e mesmo que inconsciente eles passam, também a
perder o que antes era destinado somente a eles, pois, a globalização trabalha
no sentido de aprimorar as identidades culturais locais, para que estas possam
ser inseridas na sociedade global. Assim a globalização cria juntamente com a
cultura de massa, um movimento sincrônico das identidades, sendo estas
“costuradas” em personagens na vida de Alice.
A arte
contemporânea, o sujeito contemporâneo e a obra de Adriana Peliano e até mesmo
de Carroll, não deve ser enquadrada em conceitos anacrônicos, e sim sentida
como eco de um mundo voraz, múltiplo e vasto. Esse mundo é representado não
pela verossimilhança, e sim pela liberdade, sendo esta liberdade não usada pelo
sujeito, mas pela indústria cultural, pelo mercado.
Alices por adriana peliano
[1] Trecho do artigo: “The Hunting of Alice in 7 fits” de Adriana
Peliano, artigo disponível somente para este projeto, liberado e enviado
pessoalmente pela artista.
[2] Ferramenta que multiplica imagens em
vários fragmentos. Fonte: www.lewiscarrollsobrasil.com.br,
acessado em 15/09/2011.
[3] Sobre a história das
ilustrações de Alice e a influência de Tenniel, ver: OVENDEN, Graham &
DAVIS, John. The illustrators of Alice in Wonderland. London: Academy Editions. New York: Martin’s Press, 1979. Fonte: http://brasillewiscarroll.blogspot.com, acessado: 21/092011
[4] Iluminismo: Movimento
cultural de elite de intelectuais do século XVIII na Europa, que procurou mobilizar o poder da razão, a fim de reformar a sociedade e o conhecimento prévio.
Fonte: /www.algosobre.com.br, acessado em: 29/09/2011.
[5] Doutrina
moral que considera ser o prazer à finalidade da vida: há pessoas que professam
naturalmente o hedonismo. O termo hedonismo vem de uma palavra grega que
significa prazer. Na Grécia antiga, epicuristas e cirenaicos baseavam suas
teorias éticas na idéia de que o prazer é o maior bem. Mas os epicuristas
acreditavam que os homens devem buscar os prazeres da mente, e não os prazeres
do corpo. Achavam que o sábio evita os prazeres que mais tarde podem lhe causar
dor. Fonte: www.algosobre.com.br, acessado em:
29/09/2011